Em tempos de terceirização, Eu, Daniel Blake narra a burocracia do sistema

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Por Janaina Pereira

Lembro do meu pai falando da glória que era ter um emprego com CLT. Também lembro dele licenciado pelo INSS por dois anos, depois de um AVC e, quando pode voltar a trabalhar, nunca mais conseguiu um emprego com a tão emblemática carteira assinada. Até o fim de sua vida, meu pai, que um dia foi diretor de empresa, precisou sobreviver com aquilo que o mercado oferecia: emprego de ambulante ou sem CLT. Essa lembrança me veio a mente ao assistir Eu, Daniel Blake, de Ken Loach,  filme vencedor da Palma de Ouro do Festival de Cannes do ano passado e que teve menos atenção do que deveria ao passar pelo circuito nacional.

Loach, um cineasta britânico de 80 anos, participante ativo dos festivais de cinema (é um dos mais premiados em Cannes), pode ser um estranho para a maior parte do público brasileiro, já que ele não concorre a Oscar e não faz filme de super-herói. Ainda assim, merece muita atenção sua filmografia – são cinco décadas a serviço do cinema, colocando o dedo em feridas sem apelar para o melodrama barato. Eu, Daniel Blake é mais um ótimo filme do diretor, e resolvi indicá-lo por causa da celeuma em torno da Lei de Terceirização no Brasil.

O Daniel Blake em questão é um carpinteiro (brilhantemente interpretado pelo ator Dave Johns) que, após sofrer um infarto, precisa enfrentar uma burocracia imensa para conseguir receber os benefícios concedidos pelo governo. Sem poder voltar a trabalhar, ele luta contra um sistema que insiste em negar sua doença.

Nosso protagonista é um homem de 50 e poucos anos, simples, viúvo, que não sabe usar computador e tem poucos amigos. Nas idas e vindas aos departamentos governamentais, ele conhece Katie (Hayley Squires, ótima no papel), uma mãe solteira de duas crianças que acaba de mudar para a cidade e não consegue se sustentar. Ela tem seus 20 e tantos anos, é simples, humilde e gente boa. Mãe dedicada, deixa de comer para alimentar os filhos. A burocracia do sistema aproxima os dois, que iniciam uma amizade no meio do caos de suas vidas.

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Não, o filme não foi realizado no Brasil: se passa em Newscastle, na Inglaterra, e pode ser surpresa para muitos que a vida na Europa não seja só neve e glamour. Desde o começo a gente se identifica com os personagens e, claro, com tudo que envolve o roteiro. A forma como Ken Loach nos faz participar da história é a grande sacada do filme e o final, se não chega a ser surpreendente, é realista.

Soco no estômago? Sim. Pensando se a CLT ajudou ou não a sua vida? Também. Na minha, por exemplo, a CLT nunca ajudou em nada – meu primeiro emprego está lá registrado, e nunca recebi meus direitos depois que fui demitida, meu FGTS nunca foi depositado e, mesmo entrando na Justiça do Trabalho, ficou por isso mesmo. Então, será que eu me identifiquei com Eu, Daniel Blake? Sim e com certeza.

Vão dizer que cada caso é um caso, mas a realidade dos fatos é que, assim como no filme, estamos todos entregues ao sistema. E é bom saber que o cinema consegue, ainda que cada vez mais raramente, mostrar os percalços da vida. Desde já agradecendo ao Ken Loach pelo corajoso filme, e recomendando que você assista o quanto antes – em São Paulo, Eu, Daniel Blake ainda está em cartaz.

Confira o trailer aqui.

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